Enfermeiro explica enfermagem a intelectuais





Um pouco à moda de um blogue de um médico (agora de férias parece-me…) queria deixar aqui um pequeno exemplo da forma distinta mas complementar como um enfermeiro e um médico olham para uma mesma pessoa, isto apenas para ajudar a compreender um pouco os paradigmas diferentes que ambas as profissões vivem.

Para o médico:(São 8:00) O sr António tem 58 anos e iniciou dor torácica(restrosternal) tipo aperto pelas 7:00, de duração10 min após subir lanço de escadas acompanhada de tonturas. Dor aliviou espontaneamente após 10 min e agora novamente com dor pelo que recorreu à Urgência.
Eupneico
Corado e hidratado
AP e AC normal
SV: TA 200/120mmHg ; FC 90bpm; FR 20cpm; Taur:36.5ºC
Comorbilidades: HTA; DM tipo II; obesidade e hábitos tabágicos pesados (40 cigarros/dia); Doença arterial periférica
Antecedentes pessoais: cirurgia a hérnia inguinal aos 43 anos sem complicações;
Medicação habitual:a esposa é que sabe
Plano: Hemograma; função renal + enzimas hepáticas e cardíacas; ECG e rx tórax
Oxigenoterapia; DNI 5mg

Para o Enfermeiro: (são 7:55) O sr António tem 58 anos e iniciou dor na região retrosternal tipo aperto , com duração de 10 min pelas 7:00 após esforço moderado. Dado saber que poderia ser sintomatologia compatível com EAM resolveu descansar para melhorar da dor. Dado não sentir melhoras resolveu vir sozinho para o SU. A esposa vem a caminho e é esta quem gere a toma de medicação do utente. Filho de 26 anos já vive sozinho e não sabe que o pai está no Hospital.
Bom estado geral mas com IMC de 30 (1,74 cm de altura e 90 kg)
À entrada está aparentemente eupneico. Colocada oxigenoterapia a 4 L min por cânula nasal ( a prescrição era omissa quanto ao FiO2) e dado estar ansioso a máscara facial poderia ser um factor de desconforto.
Foram avaliados os SV que o médico registou dado que neste momento o enfermeiro está a colocar o utente numa posição de conforto e repouso (deitado para fazer o ECG que será posteriormente pedido).
Colocado um acesso venoso periférico 20 G no antebraço esquerdo (se eventualmente for ao serviço de Hemodinâmica o operador está colocado à direita) e colhe 3 tubos de sangue (ainda não prescritos mas que serão H+ Bq geral+ enzimas cardíacas; não colhe estudo de coagulação porque não faz anticoagulantes nem aparenta distúrbios da coagulação).
Entretanto fez-se o ECG: com supradesnivelamento nas derivações DII DIII e aVf. Dada alta probabilidade de estar a ter EAM com supra de ST, manter dor e manter HTA é inquirido médico sobre a necessidade de fazer morfina EV(que foi diluída numa concentração fácil de dosear ou seja 1mg/mL e AAS 250 mg mastigado sendo que este prescreve no exacto momento em que o enfermeiro já tem a medicação consigo.
Procura saber se a esposa já está no SU para melhor informar da terapêutica habitual do utente e como o médico irá chamar equipa de prevenção da Hemodinâmica para realização de cateterismo de Urgência o enfermeiro pede ao auxiliar para chamar esposa junto do utente para recolher valores (roupa por ex ) e uma vez junto da esposa (já com a informação do plano) informa-a e ao utente simultaneamente do procedimento e diz-lhe para comunicar ao filho o que se estava a passar(mas com calma não vá ele vir a acelerar no seu Golf) que irá acontecer uma vez que o utente está ansioso e os médicos apenas disseram que iria fazer um exame para destapar uma veia do coração por causa de estar a ter um enfarte.
Monitorizou o doente e informou restante equipa de enfermagem para se adaptarem à necessidade de ele ficar em exclusivo com este utente sem situação crítica

Não detalhando mais… O enfermeiro, em todo este processo pensou no quê?
A apresentação inicial dum utente a entrar.
Na família e forma de esta ajudar o utente e a equipa de saúde.
Procedimentos técnicos a adoptar em caso de um utente estar com dor torácica
Previu a actuação do médico (MCDT’s e farmacoterapia).
Acomodação do utente de forma a minorar isquemia e preparação para MCDT’s.
Reparou que o doente apresentava dificuldade na marcha devido a claudicação e providenciou ajuda do auxiliar e do próprio enfermeiro para acomodar o utente.
Complementou o médico na prescrição de atitudes terapêuticas que ficaram omissas.
Preparou o utente para tratamento posterior (intervenções por parte da Cardiologia de Intervenção).
Manteve o utente a par dos cuidados actuais a prestar e actuação da equipa de saúde.
Serviu como gestor de cuidados ao interligar técnico de cardiopneumologia, médico, auxiliares, restantes enfermeiros e família.
Apercebeu-se de que o utente estava familiarizado com sintomatologia de doença cardiovascular mas não estava a cumprir medidas não farmacológicas de redução dos factores de risco cardiovascular assim como tinha negligenciado a toma de medicação ao entregar a responsabilidade da gestão da medicação à esposa pelo que é um utente que deverá ser encaminhado para o enfermeiro de família no futuro e no futuro próximo deve ser vincado este facto à equipa de enfermagem do serviço de Cardiologia.

Provavelmente negligenciei alguns aspectos mas espero que tenha dado para perceber a coisa… Que os enfermeiros se concentram naquilo que é a forma como o utente vivencia a sua situação de doença/saúde e o modo como ele pode ser ajudado a ultrapassá-la… Um “palavreado muito psicossocial” mas uma actuação baseada na ciência , eficiente e eficaz… Um verdadeiro gestor da saúde!

13 thoughts on “Enfermeiro explica enfermagem a intelectuais

  1. Obviamente que poderia perder uma outra página a descrever a sua actuação: por exemplo quais os fundamentos para pedir hemograma, Ldh, AST, ureia, etc etc… Ou ainda saber estratificar o risco para saber se é candidato a ICP ou porque é que e quais análises devem ser colhidas daía x tempo ou porque é que faz clopidogrel 600 e não 300 etc etc etc. Mas como já lhe disse… Toda a gente sabe o que o médico faz mas o mesmo não se passa em relação ao médico…No entanto, e isto é convicção minha, se virmos o utente e todos os cuidados de saúde que este necessita, o enfermeiro precisa de estar envolvido em mais do que o médico embora não com a mesma profundidade nalguns… Ou seja… Efectivamente (não reconhecido como tal) os enfermeiros até têm mais coisas com que se preocupar do que um médico…Por isso advogo tantas vezes que a formação em Enfermagem, pré e pós graduada, deveria ser mais extensa, isto se pretendermos dar qualidade à saúde.Quanto ao trabalho em equipa e envolvimento multiprofissional: neste e noutros assuntos estamos à frente do nosso tempo… Um exemplo disto é por exemplo este assunto: http://saudeeportugal.blogspot.com/2010/09/adequar-mentalidade-realidade.htmlNinguém melhor do que nós sabe trabalhar em equipa… embora possa parecer o contrário mas se quiser ver isto pela parte matemática: faça um modelo ER ou diagrama entidade relacionamento e verá que estamos em mais elos do que qualquer outro profissional… Daí a minha assumpção de que somos verdadeiros gestores da saúde.Quanto ao mandato social: leia o código deontológico dos enfermeiros e o REPE: legitima qualquer intervenção que referi e até pequei por defeito…Num próximo enfermeiro explica enf….. verá melhor ainda a que me refiro

  2. Caro ShadowsNão posso deixar de referir o apreço por ter decidido novamente comentar, mesmo com o propósito de me desmentir mas uma troca de opiniões contrárias é mesmo isso.Quanto à assumpção de que isto efectivamente não se passa, lamento dizer-lhe mas está enganado.Não lhe reconheço autoridade para dizer isso até porque nem referiu que partes seriam fantasiosas.Seria na parte de auditoria à aplicação de guidelines? Isto é muito comum, aliás se pretender comprovar isso poderia estudar quantas prescrições são modificadas até a farmacoterapia ser efectivamente concluída… Tais situações serão tanto mais comuns consoante o tempo disponível para que os enfermeiro exerçam funções mais especializadas e qualificadas.Poder-lhe-ia dar milhões de exemplos semelhantes (prometo voltar a esta "rubrica" mais tarde).Quanto ao suposto menosprezo à classe médica… não crie suspeições onde elas não existem. Valorizo muito o trabalho médico principalmente os de Med Interna e Cirurgia Geral pois são eles que ajudam a suportar o fardo de trabalhar e exercer numa Urgência e muito lhes devo … Mas o contrário também se passa.Se não descrevi a parte desempenhada pelo médico é porque este não precisa que o faça pois a sua profissão e o seu desempenho não está tão votado à obscuridade e as suas competências estão mais reconhecidas.

  3. Caro magistral estrategaEspanta-me que, por conhecer tão bem o ambiente, introduza um texto deste tipo, que na verdade não retrata de forma real e tão comum o que acontece nesse meio, pois de facto não está a falar propriamente com um leigo.De facto, disse uma verdade incontornável que passo a citar "Se pudesse ler os pensamentos dum enfermeiro em tempo real acreditaria indubitavelmente em mim". Acredito que os enfermeiros pensem nisso, aliás os enfermeiros portugueses têm mostrado ao longo do tempo, que têm feito das tripas coração, lutado contra a corrente, levando muitas bofetadas sem deixar de estar ao lado de quem mais precisa, com competência e humanismo, mas na verdade ainda existe muito a percorrer e só não fazem mais porque não lhes deixam.Agora daí uma história destas, passá-la a um dado adquirido, é de uma falsa modéstia, quanto muito não deixa de ser um sonho cada vez mais perto que os enfermeiros perseguem e bem!Por outro lado, todo o floreado que descreve, segue-se a um momento descritivo que claramente tem a intenção de menosprezar a classe médica que por muitas lacunas ou podres que apresenta ou vai escondendo, não merece de todo que o seu papel seja assim tão mesquinhamente apresentado porque a realidade do que fazem ou que a maioria faz não se resume apenas a uma colheita de dados inicial e umas prescrições (que na verdade surgem de um pensamento critico e de uma tomada de decisão).Também aconselho o sr magistral estratega a ler mais sobre trabalho em equipa, equipa multiprofissional e também um pouco sobre a definição de mandato social.O que lhe tenho a dizer é o seguinte:Presunção e água benta, cada qual toma a que quer

  4. Caro Shadows acredite se quiser mas isto é mais comum do que o contrário.A tal política de recursos humanos que nos castra , principalmente enfermeiros devido ao factor tempo associado aos cuidados de qualidade preconizados, levou-nos a evoluir de forma a fazer as coisas de forma bastante célere.Quando lhe digo isto poder-me-ia referir a outras tantas coisas.Um dia destes faço um enfermeiro explica parte II em relação a outro caso.O caro shadows pensa o que pensa pela dificuldade que muitos dos meus colegas têm em teorizar estes assuntos práticos e que são essenciais para explicar enfermagem a um leigo que deduzo que seja.De facto conheço bem a realidade das Urgências porque trabalho lá. O maior hospital do Norte.Se pudesse ler os pensamentos dum enfermeiro em tempo real acreditaria indubitavelmente em mim.Assim tenho de ficcionar histórias baseadas em factos reais e esperar que acreditem.Mas isto é como tudo na vida: tornar verosímil uma história verdadeira…

  5. Caro magistral estratega.Pela descrição que faz do caso, é uma história típica de um serviço de urgência.Se não conhece a realidade de uma urgência,esta não é assim tão colorida para a acção dos enfermeiros como assim o descreve, mas no caso de conhecer, gostaria de saber qual é o hospital em que trabalha porque gostava de o conhecer e de lá trabalhar!!! Embora faça todo o sentido o que disse e claro os enfermeiros deveriam seguir o raciocínio de cuidados que descreveu, a realidade funcional, estrutural ao nível da gestão e dos recursos humanos dos hospitais públicos de hoje (onde se esbanja fundos e mundos em politicas de saúde, onde o saco em que cai o ouro é sempre a mesma) não permite que os enfermeiros abranjam de uma forma tão minuciosa, completa e miraculosa os processos de cuidados como descreveu!! Se assim acontecesse certamente que a enfermagem era muito mais reconhecida pela população e pelos gestores e haveria maior qualidade em saúde

  6. Caro anónimoComo blogue que isto é posso arengar-me no direito de ficcionar a história que bem entender mas a ficção neste caso fica restringida "entre aspas" no nome que tanto podia ser este como o de Estaline, Gandhi ou Ferrari.Ou seja não detalha nenhuma situação específica mas apenas um agregar de histórias numa só se assim o entender. Considere-a um exemplo como tantos outros.No entanto, mea culpa, fui parcial na exposição da argumentação… Mas quem não o é.De qualquer forma agradecer-lhe-ia que enumerasse as partes lhe parecem ficção.PS: se tenho poucos comentários? Verdade mas não se devem a nenhum crivo apertado apenas aos poucos leitores que tenho e mesmo estes se inibirem de comentarem de modo que lhe agradeço o cuidado.

  7. Espero que o sr magistral estratega aceite pois como espaço de discussão que é um blogue faz todo o sentido que seja publicado! Não quero pensar que os poucos comentário (poucos) que se encontram no seu blogue sejam o resultado de uma inquisição com base no que mais convém ao proprietário do blogue!!(esta sim não merece ser publicada nem tou a espera disso)

  8. Apenas vou comentar o que a meu ver, logo no início, condena todo o texto escrito a uma mera história onde se pode criar e recriar. O autor já deveria saber que mesmo fictício não deveria mencionar nomes… Isto claro partindo do pressuposto que é uma história que retira de uma vivência particular, pois caso seja uma história inventada, o valor desta é sempre muito discutível, ou seja, vale o que vale!!

  9. Uma definição de humanismo:Humanismo é a filosofia moral que coloca os humanos como primordiais, numa escala de importância. É uma perspectiva comum a uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade. Embora a palavra possa ter diversos sentidos, o significado filosófico essencial destaca-se por contraposição ao apelo ao sobrenatural ou a uma autoridade superior.

  10. Obviamente que o caro anónimo é tão simples na sua análise que nem reparou que a palha do enfermeiro trouxe humanidade aos cuidados, assegurou que os cuidados necessários fossem prestados em tempo útil ( e assim diminui a mortalidade e uns quantos outros indicadores de qualidade ) e ainda assim teve uma atitude de evicção de erros e perspectivou intervenções futuras com o intuito de evitar mais situações de doença…Mas é a palha que lhe atafulha o raciocínio que o impede de perceber isso não é?

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